“A União tem que ser como árbitro das questões federativas. Hoje, funciona como pai”, diz Felipe Salto

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena, foi um dos especialistas que contribuiu para a análise da recente trajetória fiscal de estados e municípios que é tema da Conjuntura Econômica de maio. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista com Salto, primeiro diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), criada em 2016, de onde saiu para ocupar o cargo de secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, de abril a dezembro de 2022.

Hoje diagnóstico de que o aumento recente de receitas de estados e municípios – entre arrecadação tributária e repasses, incluindo emendas parlamentares – tem se transformado em gastos correntes, que podem gerar desequilíbrios no caso de desaceleração econômica ou choques. Qual sua avaliação desse quadro?

Quando a gente olha os dados dos estados e municípios de 2018 para cá, verificamos as finanças dos estados e municípios bastante fragilizadas, por conta de uma necessidade, a meu ver, de reformar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabeleceu limites importantes para a época em que foi editada, mas que hoje já não são limites que levam a uma melhora permanente da responsabilidade fiscal. De outro lado, houve um movimento em que a União foi instada, por uma série de mudanças no Congresso e pela própria pressão crescente dos estados junto ao Congresso, a fazer mais transferências. Não se tratou apenas do aumento dos percentuais dos fundos de participação (FPE e FPM), mas no próprio âmbito da pandemia, olhando a posteriori, foram transferidos muito mais recursos do que eram necessários. Depois veio a crise dos combustíveis, com a União fazendo intervenções também no ICMS. Na época eu estava na Secretaria da Fazenda de São Paulo, e vi como se perdeu muito tempo com isso. Os estados foram prejudicados com essa intervenção da União por meio de duas leis complementares (192 e a 194), e depois precisaram entrar no Supremo com pedidos de compensação desses recursos. Mas sempre existe um viés que acaba levando a um volume de transferências muito grande, e foi o que aconteceu novamente nesse momento. Mais recentemente, também houve a renegociação liderada pelo presidente Rodrigo Pacheco, com redução do indexador das dívidas (no âmbito do Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados - Propag).

Com tudo isso, os subnacionais melhoraram o resultado primário. Estados e municípios chegaram a ter quase 1,5% do PIB de superávit, e agora já estão de novo próximos de zero, caminhando para o déficit primário.  Isso porque esse aumento de receitas – também ajudado, claro, pela atividade econômica – em geral, sem olhar para estados específicos, levou a um aumento de gastos correntes e gastos obrigatórios. O investimento também aumentou, mas não na mesma proporção.

O federalismo fiscal brasileiro está à espera de uma mudança institucional que já tinha sido prometida lá em 2000, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que é a criação do Conselho de Gestão Fiscal, que até agora não saiu do papel. Claro que apenas criar o Conselho não resolve o problema, mas hoje a única instância que se tem para discutir questões federativas é o Confaz. foi criado nos anos 1970 pelo ministro Delfim Netto, ainda numa lógica de centralização, porque ele percebia a deterioração das finanças locais e resolveu colocar todos os secretários numa mesa para discutir principalmente as questões do ICMS. Hoje, entretanto, se trata de um fórum mais para discutir benefício fiscal do que política fiscal, tributária, gastos públicos.

Qual o caminho de correção?

Temos que tratar essa questão federativa fiscal de modo em que se reconheça, num primeiro momento, que os desiguais têm que ser tratados como desiguais. Em que sentido? São Paulo, por exemplo, não tem a mesma realidade que o Acre, que não tem a mesma realidade que Pernambuco, Santa Catarina ou Goiás.

Há estados que nunca ficaram adimplentes com a União na dívida renegociada em 1997. Vamos pegar o exemplo de São Paulo, que eu conheço melhor. É um ente que gera uma receita muito grande, permanentemente, por conta da atividade econômica que concentra. Tem ainda aqueles com situação fiscal caótica também sistematicamente, como o Rio de Janeiro, apesar de ser um estado rico. Já outros estados investem muito pouco, sequer tomam dívida, por serem mais pobres. Então, são situações fiscais e econômicas completamente diferentes, que normalmente são tratadas nivelando por baixo.

Por exemplo, na reforma tributária, criou-se o Fundo de Desenvolvimento Regional, que vai repartir R$ 790 bilhões de 2025 até 2043. Por que a União colocará todo esse recurso? Porque foi o preço que se pagou para fazer a reforma tributária. Precisa de tudo isso? Estados que não fazem guerra fiscal, por exemplo, vão ser beneficiados também, receberão transferências a título de se tratar como igual, supostamente, o estado que não tem essa necessidade e o estado que tem essa necessidade.

Então, o que é preciso fazer? Entendo que a União tem que funcionar como uma espécie de árbitro das questões federativas. Hoje, ela funciona como um pai de todo mundo. Os estados vão lá, batem na porta e acabam recebendo mais recursos, seja pela pressão que exercem no Congresso, por meio dos governadores, lideranças. Só que apenas partilhar recursos já não funciona mais. Quando a gente olha a situação, por exemplo, de um estado mais pobre, que não tem nenhuma burocracia permanente e qualificada para fazer um projeto ou mesmo para cumprir com as obrigações da lei de responsabilidade fiscal, fica nítido que chegou o momento de ter iniciativas que ultrapassem essa questão do dinheiro.

Quais são os instrumentos que faltam para posicionar o governo federal como árbitro?

Acho que o primeiro passo é criar o Conselho de Gestão Fiscal. José Roberto Afonso, que é um dos pais da LRF, sempre chama a atenção para isso, e está correto, porque esse conselho serviria para como o fórum que reuniria na mesma mesa o Judiciário, o Legislativo, os poderes executivos dos governos estaduais e municipais, e isso ajudaria a gente a qualificar melhor esse debate, para começar. A União exerceria um papel de árbitro nesse fórum. Na ausência do Conselho de Gestão Fiscal, quem faz isso é o Tesouro. Por exemplo, se tem a necessidade de harmonização contábil num determinado tópico, ele vai lá e resolve. Mas essa centralização é contrária ao espírito federativo. É necessário que os governos estaduais de fato participem e tenham o ônus e o bônus desse processo.

Um dos pontos de preocupação recentemente destacados em matéria da Folha de S. Paulo é a extensão das emendas parlamentares para os orçamentos estaduais, onde já se observam inclusive as emendas PIX, impositivas e de transparência reduzida. Como ampliar o controle sobre essa prática?

Entendo que tudo que se fez de ruim nas emendas parlamentares no âmbito federal foi copiado pelos estados. As emendas parlamentares no âmbito do orçamento geral da União para repasses aos estados representavam menos de 1% das despesas não-obrigatórias; hoje já representam ¼ desses recursos. Muitas vezes são recursos para custeio, outras para investimento, mas em geral de baixa qualidade, porque são recursos muito pulverizados, que atendem a demandas paroquiais. Pode ser, por exemplo, para cobrir o custo de uma Santa Casa, o que tem sua importância, mas que em geral é feito de uma maneira muito ineficiente.

O que precisamos discutir é o financiamento das políticas públicas em âmbito local, considerando o contexto da própria Constituição Cidadã. Ou seja, a organização dos gastos públicos por meio de programas como o SUS, que foram pensados na Constituição, e não dessa pulverização, que acaba exigindo mais recursos do que seriam necessários. Então, numa reforma orçamentária – que ao meu ver é prioridade máxima que um próximo governo deve adotar – será preciso rever todo esse modelo que foi sendo construído a partir de emendas parlamentares desde 2015, e que transformou o orçamento federal em algo ainda mais rígido. E isso é ruim para todo mundo. Pode ser bom no curto prazo para mandar mais recursos e coisas assim, só que a restrição orçamentária é cada vez maior. Estamos com uma dificuldade de ter crescimento econômico consistentemente mais alto, o que vai prejudicar a dinâmica das receitas. Isso vai impor restrições que, olhando de uma maneira “Poliana”, talvez motivem reformas mais estruturais.

Enquanto uma reforma estrutural não acontece, qual o caminho?

Entendo que o Supremo Tribunal Federal acaba sendo a instância que tenta resolver o problema, pelo menos parcialmente, quando demandado. É preciso louvar a iniciativa do ministro Flávio Dino, de buscar resolver um pouco a falta de transparência nesse sistema das emendas parlamentares. Mas é insuficiente. O Congresso e o Executivo têm que sentar à mesa para rediscutir esse modelo. Só que no modelo de presidencialismo de coalizão que nós temos no Brasil, já bastante esgarçado, se não há liderança do presidente da República, isso não acontece. É só pegar historicamente, depois da Constituição de 1988, os momentos em que a gente conseguiu avançar na questão fiscal, como a participação, o peso do presidente da República foram decisivos, né? Por exemplo, na negociação da dívida dos estados em 1997, e a LRF, duas iniciativas do governo Fernando Henrique Cardoso. Houve a primeira reforma da Previdência no governo Dilma Rousseff, o teto de gastos no governo Temer... Não são iniciativas totalmente comparáveis, mas mostram que essas questões orçamentárias fiscais, se deixadas só para o Congresso, a tendência natural dos parlamentares, na média, é ampliar gastos e garantir carimbar mais recurso. Ou seja: o Executivo, até pela função de zelar pelo equilíbrio macro fiscal, tem que ser o chato na sala, propor as mudanças estruturais e liderar o Congresso nessa direção.

O governo atual fez uma opção de política econômica que tem um peso muito grande pelo lado das receitas. Haja vista que ele aprovou uma reforma tributária do consumo, avança com uma reforma do imposto sobre a renda, e também no primeiro ano tomou uma série de medidas para elevar a arrecadação. Agora o próximo governo vai precisar olhar muito para o lado da despesa. E uma das frentes que mais alimenta essa questão do gasto público são as transferências para estados e municípios.

Como avalia o impacto político desse aumento de descentralização, da forma como é realizado?

O Congresso ganhou um poder muito grande. É claro que, historicamente, o Congresso de fato tem liderança no processo orçamentário. Mas quando a gente vai olhar a Constituição, a iniciativa do Orçamento está dada ao Executivo. Ao Congresso cabe avaliar, monitorar, proferir parecer, ficar no pé do Executivo, e não comandar R$ 60 bilhões em emendas parlamentares. As emendas só podem ser feitas se a gente resgatar o espírito originário: quando você cancela uma despesa ou reestima uma receita. O processo orçamentário não é mais isso. Hoje, quando o Executivo manda a proposta orçamentária, de partida ele já define a chamada reserva de contingência, antevendo que o Congresso vai fazer todos aqueles gastos. A legislação foi sendo modificada também para garantir essa fatia enorme do bolo para eles.

Então, o desafio é de um reequilíbrio entre os poderes, e de um acerto para que se tenha uma retomada do processo orçamentário como um instrumento de planejamento. Tenho dito que o orçamento virou um piloto automático. O Executivo tem diante de si 94% de rigidez orçamentária. Se a gente considerar as indexações, as vinculações, as obrigações e mais esses carimbos nas emendas parlamentares, o investimento que deveria ser a despesa para motivar a iniciativa privada também a investir mais, gerar crescimento de longo prazo, se transformou num adendo, em algo acessório, quando deveria ser central.

Tem um problema adicional que é o PPA (plano plurianual), que deveria servir como um planejamento de médio prazo para conter as obras prioritárias, as diretrizes, as iniciativas centrais que o país escolhe a cada 4 anos, mas hoje ele é simplesmente ignorado. O governo promoveu um PPA participativo, mas acho que não teve sucesso, infelizmente, porque não mudou quase nada. Entendo que, para mudar algo, o PPA tem que ser vinculante, como é a lei orçamentária. Por que que os parlamentares discutem tanto a LOA? Porque eles estão preocupados com o dinheiro que vai para emenda. Agora, o PPA, por que eles vão discutir, se ele vai sendo ajustado de acordo com as necessidades de curto prazo? Com isso, ele não exerce esse papel de ser um instrumento de fato para planejar, segurar as rédeas e mostrar para onde o país vai em um período de 4 anos.

Isso revela também que – depois do Plano real, quando se estabilizou a economia e o problema da inflação foi controlado – ainda estamos presos a uma lógica em que o Estado deveria ter um papel reduzido ou menor nos rumos da economia e do setor público, quando é o contrário. Ele precisa tem um papel eficaz e eficiente, mas ele é central no processo de desenvolvimento. Por isso que eu digo que para gente mudar essas coisas, vai ser preciso uma reforma muito mais estrutural que envolve não só a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas também, e principalmente, a Lei Geral de Finanças Públicas, que data do governo João Goulart.

Hoje, um dos questionamentos que se faz sobre as regras para a aprovação de crédito com garantias da União é que a fórmula para medir o espaço fiscal, base de proporção da receita corrente líquida, ela não colabora muito para conter, enfim, o desequilíbrio na evolução dos gastos, né? Qual a sua opinião?

Entendo que a evolução do gasto público tem um lado positivo. Se pegarmos de 1988 para cá, conseguimos aos trancos e barrancos viabilizar o estado de bem-estar social que a Constituição preconizava. Por outro lado, fizemos isso a um a um custo muito alto, porque foi feito de uma maneira subótima. Por exemplo, quando você pega as vinculações, o próprio Naércio Menezes Filho tem um artigo no livro que eu publiquei em 2020, junto com o Josué Pellegrini, sobre as contas públicas no Brasil que ele mostra que a vinculação dos gastos com educação foi importante para os avanços que nós tivemos no período.

De 1987 para cá, entretanto, tivemos um aumento da carga tributária de 15 pontos percentuais do PIB. Não é possível repetir isso nos próximos 35 anos, pois a restrição orçamentária claramente é maior. A dívida pública é muito alta, tem um custo muito elevado, portanto a segunda fonte de financiamento, que é o endividamento, está mais limitada do que naquele período.

Então, a agenda de melhora da qualidade do gasto, de avaliar bem antes de criar uma despesa nova, monitorar as despesas, rever programas que já não fazem mais sentido, de repensar as renúncias tributárias se tornou, a meu ver, impositiva. É por isso que eu tenho dito que em 2027, diferentemente de 2023, quando se saía de um governo à direita e o governo que assumia mais à esquerda precisou manter aquele volume de gastos enorme que foi colocado em 2022, essa agenda fiscal vai se impor.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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