“O ator central dos BRICs que a Cúpula do Rio de Janeiro revelará não serão os estados nacionais”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Enquanto a dinâmica da cidade do Rio de Janeiro se reconfigura para receber a série de encontros envolvendo a Cúpula dos Brics entre os dias 4 e 7 de julho, uma agenda preliminar de eventos relacionados à Cúpula preparou a audiência para a maratona de debates e calibrou as expectativas sobre quais compromissos serão passíveis de alinhamento entre os 11 membros do bloco, com a ajuda dos dez países parceiros.

O anúncio da ausência dos chefes de Estado de China, Rússia, Egito e Irã foi entendido na mídia como um viés de baixa nas ambições dos acordos – além de concentrar holofotes na agenda do presidente Lula com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi. Matias Spektor, vice-diretor da Escola de Relações Internacionais da FGV (FGV RI), defende, entretanto, que o ator central na atual versão expandida dos Brics não são os estados nacionais, mas as possibilidades de cooperação entre eles. “A conversa tem de se focar em como o BRICS pode servir como plataforma para que o setor privado dos seus países faça negócios de uma maneira inteligente, produtiva e que leve em conta questões ainda sem solução como as mudanças climáticas”, afirmou em evento da série Brics Dialogues, promovido nesta quinta (3/7) pelo Cebri em conjunto com a Siemens Energy e o ICS.

Spektor lembrou que as incertezas geradas pela ideia de expansão do Brics – alimentando o medo, tanto entre países aliados aos EUA quanto dos membros originários do Brics, de que por trás dessa decisão houvesse uma estratégia de China e Rússia de fortalecer posições e impor sua concepção de ordem internacional – parecem não mais se justificar. “O processo de expansão dos BRICS não gerou uma coalizão seja sob o jugo de Pequim, seja sobre o jugo de Moscou. sequer sobre o julgo da sigla BRICS”, afirmou, ilustrando a falta de consenso na reunião preparatória para o encontro de líderes, em que os chanceleres deveriam produzir um documento conjunto. “Se abrirem as páginas das consultorias de risco político, verão que todas, sem exceção, dizem que é impossível saber se esta Cúpula de fato terá uma declaração final conjunta dos líderes.”

Diante de tamanha diversidade, que até o momento parece impedir o consenso em torno de uma visão unificada de ordem global, Spektor defendeu que é necessário reavaliar as expectativas em torno dos Brics.  “É uma fantasia acreditar que os Brics podem produzir algo assim. Mas o bloco pode entregar outra coisa, muito mais rica, útil e verdadeiramente necessária, que são fluxos intelectuais, comerciais, financeiros que revelem a nova realidade do sistema internacional”, afirmou, indicando a mudança do “centro de gravidade da geopolítica do Atlântico Norte para o Leste e para o Sul”.

“Portanto, o ator central dos Brics que acho que a cúpula do Rio de Janeiro revelará não são os estados nacionais, porque estes têm enorme dificuldade em produzir consensos mesmo que mínimos em torno a temas que não deviam ser contenciosos e, no entanto, são”, afirmou. Em contrapartida, Spektor citou algumas áreas que, em sua avaliação, são prioritárias na agenda do bloco. A primeira destacada por Spektor é a transição energética. “Os Brics serão úteis se construírem uma linguagem minimamente comum para pensar como coordenar o aumento previsto da produção de petróleo em países do bloco usando os recursos que disso saem para fazer uma transição energética que o mundo precisa, que é urgente e que também é inescapável”, afirmou.

O segundo elemento dessa agenda defendida pelo acadêmico é a produção de alimentos, diante de um contexto de comércio internacional que tem seu principal regulador, a OMC, enfraquecido, sendo que dentro do próprio bloco há países com posições divergentes.  “Hoje a OMC não consegue conter e dar soluções para a batalha comercial entre países produtores de comida e países consumidores de comida, e ambos os lados estão nos Brics”, reforçou. Uma alternativa, disse, é a criação de uma plataforma de investimento no setor, sob regras comuns e que privilegie a emergência da transição ecológica. “Para isso, é preciso que o setor privado compre a ideia, e a produção agrícola brasileira seja contemplada nesse planejamento do Brics, em tudo o que diz respeito a segurança alimentar e proteção do clima”. Spektor afirma que um consenso nesse campo colaboraria também para o desafio brasileiro de reduzir as emissões em atividades importantes como a agropecuária. “Para fornecer comida ao mundo, que é sua função social global, o Brasil precisa mitigar essas emissões. É importante ter uma conversa no âmbito dos Brics para começarmos a encaminhar essa questão, bem como assegurar que energias renováveis serão rentáveis para os países do bloco, num processo onde a lógica do desenvolvimento econômico requer a emissão de gás carbônico, onde não estamos nos encaminhado para uma redução a não ser que haja incentivos econômicos”, citou.

Para Spektor, uma coordenação no âmbito dos Brics deveria acontecer paralela à agenda da COP30, que também trará o desafio dos incentivos econômicos para a transição energética. “Isso não vai acontecer numa negociação formal entre estados. Isso vai acontecer da inovação tecnológica, da inovação financeira, do setor os privados dos países do mundo. Só que juntar esses setores num modelo multilateral onde você tem quase 200 países sentados à mesa é muito mais difícil do que você fazendo num grupo que é relativamente informal e tenderá a ficar mais informal se não consegue produzir consensos. Onde você tem mais participação de atores subnacionais de burocracias, mais do que chefes de estado tentando chegar num consenso que é impossível. É esse tipo de coisa que eu acho é o futuro dos BRICS.”

Em outro evento promovido pelo Cebri, Lia Valls, pesquisadora do FGV IBRE, também defendeu a necessidade de estimular o papel do Brics como fórum de cooperação. Ao comentar a seleção especial de artigos sobre o Brics publicados na última edição da Revista Cebri, ela destacou que a forma como se analisa essa cooperação ainda é diversa, e nem sempre está desconectada de alinhamentos geopolíticos, tampouco da definição dos países como tomadores ou definidores de regras dentro do movimento de reconfiguração de um mundo multipolar.

Valls também destacou o equilíbrio do bloco diante do embate China x EUA. “Embora a China esteja dentro dos Brics, a ideia é os países do bloco possam pensar agendas globais que permitam a ele ter posições e proposições ativas e que o afastem do conflito entre os Estados Unidos a China”, lembrando que se tratam de economias em desenvolvimento, mas com formas de alinhamento diferentes.  

“A agenda Brics é muito ampla. Nesta Cúpula, a própria agenda de proposições do governo brasileiro de estimular a cooperação nas áreas de saúde, redução da pobreza, em mudanças climáticas, não é consenso dentro do bloco. Há uma diversidade de possibilidades para pensar os Brics, mas isso não significa que tenhamos que partir da ideia de que falta identidade e isso não passa de uma grande reunião. Cabem aos políticos e à sociedade utilizar essa plataforma para ver quais soluções ou proposições podem ser dadas. Passamos por um momento difícil, que envolve guerras, mas é possível avançar e escolher prioridades”, afirmou, defendendo que a melhor estratégia é iniciar pelos temas que resultem em menor risco de divergências e maior potencial de cooperação – citando entre eles a saúde. “Se o mundo é multipolar, trata-se de saber como melhor lidar com as diferenças”, concluiu, defendendo que a fortaleza do Brics se dará em consolidar nichos para construir propostas substantivas dentro dessa diversidade.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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